“Que inquietação profunda, que
desejo de outras coisas,
Que nem são países nem momentos, nem vidas,
Que desejo talvez de outros modos de estados
de alma
Umedece interiormente o instante lento e
longínquo!”
Álvaro de Campos
Parte I – O encontro
Eles chegaram num dia tumultuado de Plantão. Fazia muito frio e diversos pacientes aguardavam o atendimento. O homem alto e bem vestido atravessou o grande portão caminhando lentamente; um tanto curvado, com os braços segurando - com firmeza - uma pessoa, demonstrava carinho e preocupação. Ao avançar, de vez em quando, ele parava para avaliar o que acontecia ao redor e, depois, confiante, prosseguia com segurança, com altivez.
Era notório
que o “condutor” cuidava para não fazer um movimento abrupto e mais adiante, ao
se deparar com a porta de vidro, por um instante, não soube como proceder.
Então parou, olhou para dentro, pediu ajuda com os olhos, aguardou; a moça em
seus braços se encolheu mais, parecia pequena, parecia fraca, estava
semi-desfalecida. A ajuda veio de fora mesmo, o segurança da Clínica
adiantou-se e abriu a porta; o homem agradeceu, eles entraram.
Na sala repleta, o burburinho cessou
como por encanto e todos os olhos voltaram-se para o casal: a moça estacou,
parecia decidida a não-continuar, ele parou novamente, perguntou algo numa voz
doce, sussurrante; ela desfez a resistência, prosseguiram. A secretária
levantou-se, ajeitou um lugar bem próximo da mesa em que estava e fez sinal
para que se aproximassem. Ao chegar, de forma delicada, o homem fez menção de
colocar a mulher na cadeira, mas ela então,
agarrou-se mais ainda em suas roupas e agora, dava para ver que apertava a sua
barriga.
“Pois não”, disse a secretária tentando
interferir na situação, “se eu puder ajudar...” “Não se incomode, eu me ajeito.
Helena precisa de um psicólogo, eu sou o marido, muito prazer, Daniel Rodriguez
Ortega, veio indicada pelo psiquiatra, o nome da minha esposa é Helena de Sousa
Ortega, se puder ser atendida o mais rápido possível, eu agradeço”. Falou tudo
isso, sorriu, estendeu a mão e foi se ajeitando com a mulher. Ele encostou-se
na parede, curvou-se, apoiou uma das pernas no descanso da cadeira permitindo
assim que Helena ficasse sentada e encostada ao mesmo tempo.
A moça deixou de apertar a barriga do
marido e, pela primeira vez, sentiu-se confortável; lentamente, mexeu a cabeça
e ousou vistoriar o ambiente: constatou que diversas pessoas olhavam para ela
e, rapidamente, num movimento abrupto, escondeu o rosto entre a camisa e o
paletó de Daniel. Todos os pacientes que, perplexos, acompanhavam a entrada
enigmática do casal, perguntaram-se, automaticamente, naquele exato instante,
em sintonia, qual seria o problema da mulher-dependurada-no-marido.
“Ela parecia... ela parecia... com o que ela
se parece?” A face única de cada paciente incorporada à face única do grupo de
pacientes tentava identificar com o que parecia aqueles dois sendo um. “Ela se
parece com algo menos que uma criança”, poderia ser uma boa definição. “Ela
parece se constituir numa parte dele”, também poderiam cogitar. A mulher, tal
como Daniel, trajava roupas bonitas, caras; ela usava – ainda – sandálias de
salto alto e como é que alguém nessas condições consegue usar aquelas sandálias!?
As formas do corpo e até mesmo a altura de Helena não dava para precisar devido
ao grau de “retraimento” e de “aderência” ao marido; mas o tom de pele dava
para saber, era de uma morenice carioca, de mulata.
A face única do grupo de pacientes levou
um susto de curiosidade quando Daniel, ao tentar retirar o documento de
identidade da carteira, teve de se mover e a bolsa de Helena escorregou do meio
da “aderência” deles, caindo - aberta - à vista de todos. Batons rolaram pela
sala, algumas páginas soltaram-se de uma pequena caderneta de endereços e um
espelhinho bonito, rosa-choque, abriu-se. O marido pediu auxílio, mais uma vez,
através do olhar, e uma adolescente prontificou-se a juntar os pertences e
devolvê-los: a sofisticada bolsa foi entregue minutos depois, ao onipresente
marido que já passava os dados para a secretária.
“Ela pode ser atendida primeiro?”
Perguntou a funcionária que, tal como os outros, esforçava-se para compreender
o que se passava sem, no entanto, obter sucesso. Daniel lançou outro olhar para
os pacientes-espectadores, havia dignidade naqueles olhos e também transparecia
uma súplica comedida, tímida: a cabeça única do grupo de pacientes balançou
afirmativamente. “Vou chamar a estagiária”, e saiu apressada.
-
A decisão
Ao chegar à sala de alunos, a
funcionária deparou-se com quatro estagiárias esperando as fichas de pacientes.
“É uma emergência, um casal chegou e a mulher está toda encolhida; praticamente
veio carregada pelo marido. É indicação psiquiátrica, não consegui saber mais
nada; sugiro que a ficha seja preenchida no final do atendimento, por ela ou
pelo marido. Quem se habilita?” As alunas queriam fazer perguntas, mas pela
tonalidade de voz da secretária, perceberam que a situação era crítica,
entreolharam-se. De repente, Mariana disse: “eu vou, preciso apenas de dois
minutos de concentração”.
“Boa sorte!” Desejou Beatriz enquanto
voltava para a sala de espera. Mariana respirou fundo, bebeu um copo d’água:
“mais uma mulher”, pensou, “só atendo mulheres no Plantão, por que será?” As
outras alunas, disfarçadamente aliviadas, agora, desejavam acompanhar o
desenrolar dos acontecimentos: empenhadas em decifrar as importantes pistas
deixadas pelos pacientes no primeiro contato com a Instituição, sentiam
que aquela entrada enigmática prometia, ah, se prometia...
Mariana, para evitar especulações,
caminhou rapidamente para a sala de espera e chamou por Helena. Antes mesmo de
colocar os olhos no casal, a aprendiz reparou que o silêncio era imperioso,
“que estranho”, pensou; e foi impedida de continuar suas conjecturas porque
ouviu a voz de Daniel, “muito prazer! Eu sou o marido, precisamos de seus
cuidados”. Os olhos da aprendiz caíram sobre o homem alto e bem vestido, ele
sorria. A face única dos pacientes voltou-se para a futura-psicóloga, queriam
ver sua reação.
Mariana compreendeu que o silêncio era
resultado da convergência do direcionamento de todos os olhares e viu-se dentro
da trama, sendo vista. Demorou alguns segundos para se localizar, deveria tomar
cuidado, pois, tudo que fizesse, a partir daquele instante, passava a
interferir numa história alheia, desconhecida ainda, comportando,
provavelmente, intenso sofrimento. O sorriso de Daniel pareceu-lhe franco
demais, positivo demais, quase singelo e, por causa disso, sentiu desconforto:
suas maneiras e perfume, sua pele clara e músculos, discretamente-disfarçados
pela roupa cara, evidenciavam uma masculinidade bem construída, bem
intencionada, reprodutora.
“Um homem maternal”, pensou,
“virilmente maternal”. E isso causa certa
confusão na indecisão, na falta de preparo e na insegurança”. Mariana foi, mais
uma vez, obrigada a interromper os pensamentos porque ele se esticou e estendeu
a mão, a estagiária devolveu o gesto. “Um homem bonito, novo, dedicado, isso
tanto salva quanto pode colocar em risco”, ainda conseguiu formular. “Essa é
Helena.” O psiquiatra nos enviou aqui, dizendo
que ela precisa urgente de psicoterapia”. Mariana olhou para baixo, a mulher
estava “agarrada” ao marido, mal se viam seus braços, enrolados no paletó, e
mal se viam suas pernas porque a curvatura do marido as encobria. Daniel
colocou o rosto dentro do próprio peito e sussurrou algumas palavras, depois
levantou a cabeça e perguntou, “qual o seu nome?” “Mariana”; ele repetiu o
movimento anterior, sussurrou e, com evidente expressão de alívio, declarou:
“ela gostou de você!”.
Os presentes aumentaram de estupefação,
o silêncio; não se ouvia nenhum som de dentro das roupas de Daniel. Como é que
eles se comunicavam então? Mariana olhou para a secretária, que olhou para
Daniel, que voltou a enfiar a cabeça em si mesmo. “Ela quer saber sua idade”;
“30 anos”, foi a resposta; depois de um tempo, com a cabeça enfiada, afirmou:
“estamos aguardando suas orientações, doutora”. “Me sigam, por favor,” disse a
estagiária e indicou o caminho a ser percorrido; os pacientes repararam que
Helena resistiu menos, dessa vez, o que facilitou a tarefa de Daniel, que
podia, enfim, andar com mais facilidade.
-
A sessão mesmo
Mariana
escolhera uma sala de atendimento, próxima da sala de espera, para justamente,
facilitar o acesso do casal; não demoraram e mesmo assim, a aprendiz, viu
rostos curiosos pelo percurso; se pudesse, também ficaria a observar – à
distância – aqueles dois andando como se fossem um. Ao abrir a porta, percebeu
que Helena cobria a cabeça com um véu, é que da camisa impecavelmente branca de
Daniel escapava a ponta de um lenço colorido, brilhante, de encher os olhos.
O
casal entrou e os dois sentaram-se. A paciente
desvencilhou-se da camisa do marido e ocupou uma cadeira, mantendo-se curvada e
retorcida, com as mãos nas pernas dele e com a cabeça levemente erguida,
voltada para a parede. Mariana agora, conseguia identificar outra pessoa ali,
se bem que o lenço-véu ainda ocultava sua face e seus cabelos; estava bem
vestida, de salto alto, pele morena, mais baixa que o marido se supunha.
Daniel
retirou um lenço do bolso, passou sobre a testa, se recompôs como pôde e
relatou: “eu não sei dizer o que se passa, ela tem apresentado, de dois meses
para cá, comportamentos estranhos; também reclama de dores pelo corpo, já
desmaiou três vezes, anda esquecida e aérea, depois se irrita do nada e briga
comigo, com as crianças”.
“Que
idade têm as crianças?” “São três, uma de outro relacionamento da Helena, a
Clara, que tem 10 anos; os outros dois são nossos, o Marcos, de 07 anos e a
Paula, de 04”. “Há quanto tempo estão casados?” “Há oito anos”. Helena, nessa
hora, puxou um pouco o lenço e olhou para o marido, ele se curvou, sussurrou
algo, a mulher parecia piscar acentuadamente. Mariana, mesmo tão próxima, não
compreendia, não decifrava que forma de comunicação era aquela.
Daniel
mencionou a sua decisão de consultar um psiquiatra e enfatizou o receio da
esposa de enlouquecer; acrescentou a isso as fortes dores de cabeça e o adormecimento,
há uma semana, do lado direito do corpo. Nessa hora, um espasmo se deu na parte
do rosto que quase encostava no colo de Daniel e a paciente se contorceu; o
marido se “reorganizou” para conter a movimentação física e continuou,
pausadamente, seu relato. Mariana, se pudesse, ficaria entretida observando a
performance do casal: era “um acontecimento” aquela composição, despertava uma
curiosidade muda, visualmente-cúmplice.
E
então, pressentiu que aquilo ia longe, poderia durar o dia todo, se fosse o
caso. Resolveu cortar pela raiz, queria ficar só com Helena. Daniel
assustou-se, mas não se atreveu a colocar qualquer obstáculo, apenas abaixou-se
e sussurrou; depois foi saindo devagar, olhando as duas, a mulher na mesma
posição, ele disposto a voltar se precisasse. Saiu.
Então
Helena ergueu-se, ajeitou-se na cadeira, arrumou seu lindo lenço e falou: “Oi
Mariana, gostei de você e gostei de me consultar com uma mulher, temos muito o
que dizer uma para a outra.”
A
aprendiz sentiu as pernas bambearem e só não demonstrou o susto porque estava
acostumada com improvisos e “saias-justas”: vocalista de uma banda, há mais de
dez anos e considerando-se uma cantora profissional, aprendera a enfrentar o
público a cada apresentação, em cada música interpretada. Quando Helena
ergueu-se, foi como enfrentar um público hostil tendo de ocultar algumas
sensações, mostrando outras (agindo assim para não sucumbir, para impor
respeito-na-presença).
E
o que pensou é que estava vendo coisas ou, então, que o início acontecia exatamente
naquele instante. Para piorar, perdeu-se na contemplação do magnífico lenço:
“em que lugar encontrou essa peça?” E da frivolidade desconcertante, viu-se
decomposta em vaidade: teve de respirar lentamente para localizar-se, mais uma
vez.
“A minha história é triste, uma
sucessão de acontecimentos ruins; desde pequena, sabe, doutora!? A minha mãe
morreu quando eu ainda era bebê e o meu pai, esse se envolveu com drogas, na
minha adolescência; na verdade, ele vendia drogas,” destacou a paciente num tom
sussurrante, de gente eterna-vítima-das-circunstâncias. “E as ameaças foram
muitas por causa disso, perdi a conta de quantas vezes tivemos que mudar de
casa, meio que fugindo, sabe?”
Mariana, intuitivamente, ajustou-se:
“uma comunicação restrita ao par em que o marido-maternal fala, e uma história
trágica que produz uma condição de não-saída. É isso, só isso”. Com o “só
isso”, a estagiária queria reafirmar seu lugar-compreensão, de função
terapêutica, já que Helena se constituía num turbilhão de possibilidades,
desvios e enigmas. A paciente não parava de falar, porém, o que ficava evidente
pelo tom de voz da moça-vítima era o acentuado consolo pela condição
tragicamente definida e um orgulho resignado pela não-escolha. Não aparecia o
ódio ou a revolta, nem a dor pungente; havia uma lisura úmida, escorregadia.
A plantonista fez perguntas, teceu
considerações, porém, sabia, de antemão, que não atingiria Helena: a
moça-do-lenço-colorido manteve o mesmo discurso, desconsiderou as intervenções,
falava apenas para mostrar que estava alojada e sem ressentimentos. A
vocalista-psicóloga desconfiou da condição “sublimada” da vivência de
não-saída, mas nada podia fazer, teria que esperar, deveria aguardar.
Ela
esfregou as mãos, o frio continuava intenso, um grau positivo, anunciaram no
rádio, pela manhã; de repente, olhou pela janela e viu a neblina forte, densa.
Voltou novamente o rosto na direção de Helena e viu-a em pé, muito perto, a
observá-la; quis afastar sua cadeira, mas a mulher de Daniel foi mais rápida e
deu um passo para trás.
A paciente, então, com a mão direita,
foi lentamente tirando o lenço colorido e deixou cair sobre os ombros uma vasta
cabeleira negra; mexeu, com graça, a cabeça e os cachos se assentaram, então,
disse: “Doutora!?” Mariana podia jurar que estava vendo coisas novamente: “o
que se passava ali?” Helena começou a andar pela sala falando numa tonalidade
de voz rouca, melodiosa, sensual; parecia que iria iniciar uma performance, um
strip-tease melhor dizendo.
Mariana,
atordoada, procurou a outra, a vítima, “onde ela está?” Nada sobrara, “onde ela
está?” Nenhum vestígio, “onde ela está?” Nenhuma fase intermediária, “onde ela
está?” Nada, nada, nada. Ela, simplesmente, desaparecera...
“Somos tão parecidas, você não acha?”
Disse a bela mulata, em pé, a meio metro, um tanto curvada para frente, a se
oferecer: “a mesma cor de pele, os mesmos cabelos, se bem que os meus são mais
cheios, longos, mais escuros; e essa pinta, não acreditei quando vi que era do
mesmo lado, sabe!”. Mariana levou a mão automaticamente à boca, havia uma pinta
sim, sua companheira de décadas, um tanto charmosa, evidentemente, mas de um
valor surpreendente naquele instante: capaz de “derrubar” macho - pensou
involuntariamente.
“Vem cá, me confidencia aqui ao pé da
orelha, tem coisa melhor do que sexo?” E então a moça se aproximou e quase encostou seu rosto no rosto de Mariana. A
estagiária não respondeu por um triz, viu-se traindo a si mesma e, esbarrando
no instante derradeiro, sentiu um calafrio que salvou a situação porque fez com
que permanecesse de boca fechada. Helena soltou uma gargalhada, afastou-se e
começou a falar de preconceito racial, de violência sexual, de um aborto que
teve de fazer, e do casamento que deu a ela a possibilidade de “fornicar” com a
benção de todos e da Igreja. Riu mais alto.
Mariana olhou para aquela mulher e viu
a encarnação do sexo; e então, compreendeu que
não se tratava de representação: Helena tinha assumido até ali, de um instante
para outro, três versões de si mesma... A aprendiz não conseguia dar
continuidade a seus pensamentos, não conseguia discernir o que sentia, estava
em desconcerto-puro; a situação era crítica, o que se faz com uma mulher que
vai se desdobrando em várias?
E resolveu reparar naquela que estava
bem à frente: “era uma profissional do sexo”, pensava. Ao ajustar sua
capacidade investigativa, considerava pobre sua definição, “é mais que isso, é
outra coisa, outra coisa...” E tentou fazer com que sua intuição pudesse
auxiliá-la, estava tão confusa que até precisava de esforço para relaxar, para
distrair-se, para... “Uma ninfomaníaca, é isso, eis o que vejo; por isso esse
apelo quase irresistível, essa potência avassaladora, essa feminilidade
exclusivamente erótica”.
A compreensão do que via fez com que
ganhasse um pouco de tempo e tranqüilidade; não servia de nada para intervir,
mas servia para não se perder; pelo menos, sabia o que tinha diante de si. As
histórias “contadas” pelas três versões eram distintas, não se percebia ligação
entre uma e outra; e tal qual as aparições, vinham recortadas, autônomas,
independentes. A vocalista poderia costurá-las, mas seria um trabalho seu,
posterior, e nesse instante, percebeu que a paciente é quem deveria juntá-las,
transformá-las na mesma coisa.
Mariana discretamente sorriu, havia descoberto
o caminho: Helena deveria, afetivamente, juntar as três mulheres que habitavam
sua alma. “Ótimo, mas como?” Isso a irritava na psicologia, uma descoberta
valiosa como aquela não modificava em nada a situação das duas; cada enigma
desvendado apresentava outros, que, por sua vez, induzia a outros, que,
provavelmente, indicaria mais alguns, era sempre assim.
“Eu não tenho amigas, nunca tive e sabe
por quê? Elas sentem ódio ou inveja de mim. Por causa dos homens, que me
rodeiam, que me querem; que perdem o controle quando se aproximam. Desde
pequena, desde os seis anos de idade, já era assim: um primo adolescente, por
parte de pai, começou me passando a mão e terminou tentando me penetrar, mas
não teve coragem de ir até o fim, deve ter ido até o meio – é o que lembro. Eu
sentia dor e prazer; meninota de tudo eu era, mas já batia um bolão, viu”!?
Mariana não dissera uma palavra sequer,
acompanhava a Helena-ninfomaníaca com interesse e precaução, mas
ajustadamente-emudecida, dando vazão à parte-lúcida-da-ninfomania. A estagiária
quase riu quando se qualificou assim, mas era exatamente o que sentia, e Helena
tinha razão quando dissera que eram iguais, na verdade, todas as mulheres são
muito semelhantes, pois, são feitas da mesma matéria. Mariana nunca duvidara
disso, nem tinha o menor problema com as questões que envolvem o feminino; ela,
de vez em quando, se surpreendia porque, ao vasculhar o passado, encontrava
prontas as soluções para os diversos conflitos relacionados à vivência do
feminino.
Aquilo era curioso e talvez “fazer psicologia”
desse a ela a oportunidade para compreender as razões de tanta descomplicação
e, ainda, poderia se constituir num raro instrumento de auxílio às mulheres.
Era como se todas as mulheres coubessem nela, já que encarnava as versões
resolvidas, proveitosas e positivas da alma-corpo femininos.
Cantar
era justamente isso, mas muito separado, cada condição-de-mulher na sua
singularidade. Mariana precisava de mais, precisava ver através de outra
mulher, precisava complicar para sentir o diferente-feminino: era uma alma
feminina ávida das inúmeras facetas possíveis de ser mulher, usufruindo da
mesma temporalidade, complicando.
-
As outras Helenas
E
diante dessa valiosa e inesperada descoberta (acontecida exatamente naquele instante),
ficou, pela primeira vez, feliz na presença de Helena: a obrigação de atender e
a vontade de ser competente não tinham que ver com o prazer de estar ao lado de
um paciente. A estagiária-que-canta que, por obrigação e gosto pelo desafio,
começara a atender uma mulher dependurada no marido, agora, estava francamente
feliz por relacionar-se com uma mulata ninfomaníaca que desfilava pela sala de
atendimento falando – obviamente - de sexo numa voz melodiosa, sensual.
Mariana
de-feliz ficou também à vontade, e agora desejava compreender - no todo - o que
se passava. E foi justo no instante em que se fez silêncio entre elas, que
Helena foi caminhando devagar para um canto da sala e sentou-se, tirando a
sandália de salto alto, abaixando a cabeça e deixando de mover-se. A aprendiz
suspeitou de mais uma versão, mas qual seria? Permaneceu onde estava; a
paciente prendeu o cabelo com uma fita que trazia amarrada numa parte do
vestido e começou a cantarolar “o cravo brigou com a rosa” numa voz tristonha,
infantil, comovente.
Helena,
agora, meninota-de-tudo, balançava o corpo para lá e para cá; e cantava e
cantava, aumentando o entusiasmo. Mariana estava assombrada com a diferença
entre as vozes: “como ela consegue?” A especialista em voz, aguçou os ouvidos
“esta voz é de criança. Como ela consegue?” E, por alguns minutos, ficou a
ouvi-la, absorta, admirada, paralisada. Depois, não sabendo bem o porquê, levantou-se e sentou-se ao lado da
Helena-menina e cantou junto, embalada pela voz suavemente-triste. A paciente então
olhou para ela, sorriu e perguntou se tinha alguma boneca ali; “aqui não, tem
noutra sala”. Helena inclinou a cabeça encostando-se no ombro da estagiária e
cantou “atirei o pau no gato”.
“Eu
tenho vinte e cinco bonecas, brinco com elas todos os dias, de tardezinha; tem
uma que vai se casar, ela é tão bonita, é rica e é atriz”. “Qual o nome dela?”
Perguntou Mariana; “Pamela”, em seguida, falou dos preparativos para o
casamento e falou das outras bonecas e riu. Porque uma delas estava doente,
chorou, e depois riu de novo e, mais uma vez, cantou.
Meia
hora depois ainda estavam na mesma posição e a plantonista se perguntou quantas
Helenas existiriam e se deveria terminar a sessão somente depois de ter sido
apresentada a todas. “Até agora são quatro; duas horas de atendimento e não
tenho a menor idéia do que virá a seguir”. Nesse momento, lembrou-se de Daniel,
“o que estará fazendo, o que estará pensando?”
“E
aquela platéia de pacientes? A essa altura, com certeza, já se desfez; foram
atendidos e partiram; talvez um ou outro, em seus retornos, pergunte para a
secretária o que foi feito, afinal de contas, da mulher “dependurada” no
marido. E Mariana também pensou em suas colegas, roendo-se de curiosidade para
conhecer os detalhes daquela misteriosa história. “E como saberei que já vi
todas as Helenas? E o que farei para que possa juntar todas as versões? E o que
direi ao marido quando este atendimento acabar? Será que ele sabe o que
acontece aqui? ”
A
aprendiz ainda não conseguira conversar com Helena, o que tornava as coisas
mais difíceis. É que nenhuma daquelas versões se prestava ao diálogo, parecia
que apenas queriam “existir”, exibindo-se numa existência recente e um tanto
“aflita”, e que precisavam fazer isso na presença de outra mulher. “Eu duvido
que Daniel saiba, ele teria ficado muito assustado; aqui é o lugar, aqui é o
melhor lugar”.
Mariana
sentiu uma ponta de esperança ao pensar que aquela poderia ser a primeira
manifestação das Helenas; se fosse isso mesmo suspeitava de uma adequação, de
uma sabedoria com intenção de modificar o que precisava ser modificado. A
vocalista também não compreendia como se dava a passagem de uma para a outra,
quando e por que cediam a vez; aparentemente, não havia indícios que
aconteceria.
A
plantonista gostou da menina Helena, que era doce, de muita imaginação e
necessitada de reconhecimento. Ela apresentava gestos delicados, graciosos e
femininos; a pureza das crianças estava fortemente presente e pouca coisa
comovia tanto Mariana quanto a ingenuidade infantil. A cantora-de-bela-voz era
capaz de permanecer horas na companhia de crianças para disso usufruir, para
nisso se envolver, para também participar. Aquilo era uma dádiva dos céus, um
presente dos deuses, uma coisa posta no mundo para consolar corações e permitir
a renovação da alma: “um bálsamo”, resumia.
-
Helenas, ainda mais
E
foi quando já estava se distraindo com o ambiente infantil daquela parte do
encontro que, Mariana, identificou um vestígio de outra coisa no ar: olhou para
a paciente e constatou que calçava novamente as sandálias. A mulher fez alguns
movimentos para esticar braços e pernas, mexeu delicadamente o pescoço,
sentou-se e disse: “muito prazer, eu sou Helena e preciso de sua ajuda”. A voz
era, evidentemente, outra e a tonalidade, grave, séria, concentrada.
“Eu
estou enlouquecendo, tenho sentido coisas muito estranhas e tenho tido
pensamentos de morte, de destruição. Como o meu marido já disse a você, tenho
ficado nervosa do nada, tenho tido desmaios e aparecem fortes dores pelo corpo
até tudo ficar anestesiado, depois vêm umas ausências de memória. Estou
preocupada, Mariana. A consulta com o psiquiatra foi boa para acalmar Daniel,
mas para mim não teve serventia; eu precisava é de ser atendida por uma mulher
feito você: forte, séria, múltipla, bonita”.
“E
como posso ajudá-la?” “Isso eu não sei, sinceramente não sei.” E então, chorou.
A plantonista sentiu que estava falando com a Helena capaz-de-diálogo, quase
gritou de alegria; agora poderia compreender o que se passava, agora poderia se
comportar como gente normal; poderia, enfim, conversar. “Você sabe o que está
acontecendo aqui?” “Sei, e estou tão surpresa quanto você. Antes não chegava a
tanto, eu não modificava a voz nem fazia tantos trejeitos; era uma espécie de
encenação em que eu me imaginava diferente, fazendo coisas diferentes.” “O que
sentia quando agia feito criança”? “Eu me sentia como criança e não queria
deixar de ser criança, queria continuar assim, para sempre”.
“Você
perde a noção do restante?” “Sim e não, e não sei explicar”. “Enquanto você
vivenciava uma versão sabia que existiam outras?” “Sabia, mas a que predominava
fazia força para esquecer; eu vou enlouquecer, Mariana, sinto que vou. Tudo
isso é mais forte do que eu, elas vão e vêm e tenho medo que fiquem mais e
mais, obrigando o Daniel a me internar”. “Você o ama?” “É mais que isso, eu não
sobrevivo sem ele; e Deus sabe que eu não o mereço; Deus sabe o quanto de
sacrifício tenho feito para me manter razoável, boa mãe, uma mulher decente”.
A
plantonista fixou bem o olhar e disse: “me diga com sinceridade, Helena, o que
é uma mulher decente?” “Você sabe muito bem” e a resposta saiu ríspida,
cortante; “eu não sei, me diga”; “ora, ora, moça, desde que o mundo é mundo
todos sabem”, falou com desdém; “eu faço parte do mundo e ainda não sei, me
diga”. “É uma mulher honesta, dedicada, que ama seus filhos e marido acima de
qualquer outra coisa. É isso, sendo prática, milenarmente prática.” “Você
definiu as mulheres a partir da relação com os homens...” disse a aprendiz num
tom vago, neutro, quase conciliador. “E tem outro jeito de ser mulher?” Veio a
constestação. “Talvez não...” e ficou quieta, calada.
Além
de emudecer, a vocalista olhou pela janela, queria demonstrar leveza, muita
segurança e uma displicência-não-ofensiva; ela queria sugerir
com-gestos-simples-e-delicados que detinha a resposta para uma dificílima
questão. Apareceu o silêncio. Helena também olhou pela janela e aproveitou o
silêncio para refletir, e se aquele era o lugar para lançar-se de forma tão
variada, também poderia ser o lugar para, verdadeiramente, refletir ao lado de
alguém.
E foi assim que fez um retrospecto de
sua vida: revirou episódios, despiu ilusões, alegrou-se com o nascimento dos
filhos, os três. Seu olhar ficou difuso e a mulher de Daniel podia visitar o
passado dentro e fora de si mesma (revestido de afeto ou espelhado na
reflexão): aquilo tanto fazia parte do mundo-de-todos como constituía um
mundo-só-dela. E refletia, refletia, refletia... E ouvia a respiração de
Mariana, desdobrada em dentro e fora... Tão próximo, ao alcance dos seus
gestos, havia outra mulher, silenciosamente viva, desdobrada em dentro e
fora... E o frio compartilhado, naquele dia, se desdobrava em dentro e fora...
E, por um instante, muito de repente, de um reticente-nada, uma esperança frágil
ousou acenar - timidamente - de dentro para fora e houve um sacolejão e Helena
caiu, retorcida.
A plantonista soltou um grito, tremia;
e ao perceber que a paciente iria começar a se debater, rapidamente,
instintivamente, ajoelhou-se, prendendo o corpo da mulher entre suas pernas; em
seguida, se debruçou sobre ela juntando os braços e segurando com força, toda.
Helena explodiu numa convulsão violenta, contorcendo-se. Mariana tentava
prender entre os dedos a língua da paciente enquanto as pernas da mulata
sacolejavam; a aprendiz precisou de mais força, agora as duas se enfrentavam:
uma enfurecida, querendo arrebentar e a outra, assustada, necessitando conter.
Assim ficaram não se sabe quanto tempo: duas mulheres abraçadas, deitadas no
chão frio de uma Clínica-escola, medindo força, num dia de neblina densa,
envolvente.
-
Helenas, mais nenhuma.
Aos
poucos, os movimentos da mulata cessaram e ela ficou inerte; Mariana aguardou
alguns instantes para ter certeza de que deveria soltá-la e arriscou; a moça
permaneceu quieta. A plantonista suspirou e estava tão sintonizada com a
situação que tinha certeza de que aquela versão tinha mais coisas a mostrar.
Aguardou. E estava profundamente impressionada com sua capacidade de aguardar,
era isso o que fazia todo o tempo ao lado de Helena: esperava.
A paciente não demorou a mover-se, remexeu
daqui e dali, levantou a cabeça, olhou em volta, tinha um olhar assustado, que
nada fixava. “Eis a louca”, pensou Mariana e teve receio do que ainda pudesse
eclodir, por isso preparou-se. A mulher esticou
a mão pedindo ajuda e levantou-se, estava descabelada, amarrotada, parecia que
acabara de fugir do manicômio. Uma vez em pé, tossiu uma tosse comovente, de
tuberculoso crônico e Mariana não gostou nada do calafrio que percorreu seu
corpo.
Depois
de tossir, começou a falar frases desconexas, sem sentido, pela metade; às
vezes, nem frases chegavam a ser, eram palavras soltas, que pareciam pertencer
a outro idioma, e foi falando. De começo, bem baixinho, de repente, muito alto,
quase gritando e girou para a esquerda dez vezes, depois, para a direita,
vinte. “Completamente louca”, pensou a estagiária e se não fosse seu estágio no
hospital psiquiátrico anos antes, teria encerrado o atendimento ali mesmo,
chamando o marido e dizendo que marcaria uma consulta com o psiquiatra da
Clínica e que, então, resolvessem por lá.
A
paciente, de tagarela, ficou muda. Passou a mão direita pelas paredes da sala,
escolheu um canto e ficou virada para ele; de repente, começou a chorar.
Mariana aproximou-se e colocou a mão em seu ombro, o choro veio forte e as
lágrimas caíam, caíam, caíam... Ela soluçava, e o choro virou um lamento e a
vocalista teve de fazer força para também não chorar.
A
estagiária sentiu que se aproximava do seu limite,
não agüentaria mais reviravoltas e abismos, precisava descansar e desejou
desesperadamente que aquele atendimento chegasse ao fim. “Se aparecer mais
alguma, eu não terei forças para interagir, eu não terei...”
E
respirou fundo e tentou cantar mentalmente uma de suas canções favoritas, e
tentou... “Obrigado, doutora, a minha alma, há muito tempo não sabia o que era
um minuto de paz”, falara a Helena-normal. A estagiária quase caiu de joelhos
quando ouviu novamente a voz grave, concentrada; “elas estão se repetindo,
terminou, terminou... Assim espero, terminou”, pensara. Então olhou firmemente
para a mulher de Daniel e disse: “eu quero que volte daqui a dois dias, tudo
bem?” “É você quem manda” e as duas se entreolharam com muita cumplicidade.
Helena,
naquele olhar, parecia simples, talvez até conseguisse sorrir se precisasse, e
Mariana estava satisfeita porque haviam conseguido um desfecho promissor e bem
na hora. “Você chama o Daniel aqui?” Ela pediu; “claro, agora?” “Sim”, e a
aprendiz abriu, aliviada, a porta do consultório não acreditando quando uma
rajada de vento atingiu seu rosto... “Onde ele está?” Perguntou para Beatriz,
que veio a seu encontro; “ali fora, vou chamá-lo; está tudo bem?” Ela mexeu a
cabeça confirmando e esperou. Daniel apareceu em segundos, “está tudo bem?”
“Está, eu marquei outra sessão para daqui dois dias, ok?” “Sim, claro,
claro...” E entraram.
Helena
estava na mesma posição em que o marido a havia deixado, três horas atrás; ele
a ajeitou, ela o “agarrou” e, mais uma vez, o homem dedicado usou o olhar para
consultar Mariana; “teremos que ter paciência, Daniel, na próxima sessão, eu
converso um pouco com você; por hoje foi satisfatório”. Eis o que disse, e
acompanhou-os e anotou a data do próximo encontro e se despediu.
-
O depois
Antes
que retornasse para a sala de atendimento, a vocalista, exausta, pediu um café
forte, com muito açúcar; estava exaurida. Beatriz e as colegas que permaneceram
na Clínica, na tentativa de demonstrar apoio, rodearam-na percebendo que não
conseguiria articular uma frase sequer. A moça pediu mais café, alguém ofereceu
um chocolate, ela aceitou.
O
tempo foi passando, o telefone da Clínica tocou, uma estagiária precisou
imprimir relatórios e a vocalista permanecia calada, respirando lentamente,
tentando juntar forças para reerguer-se. “Ela assumiu seis versões de si
mesma”. “O que?” Outra aluna perguntou. “Aconteceu de tudo lá dentro”, foi a
resposta; “ela se transformou em criança, em maluca, foi normal, ninfomaníaca,
vítima e aquela que vocês viram, a fetal”.
“Ela
representava esses papéis?” “Não, ela os vivia; com voz diferente, olhar
próprio, gestos diferentes, com pedaços distintos de alma”. As alunas
entreolharam-se, compreenderam a complexidade do que acontecera e decidiram
silenciar; se Mariana continuasse o relato tudo bem, se não, apenas se
certificariam de que estava em condição de voltar para casa, sozinha.
Parte II – A alma espelhada
Mariana, tarde da noite,
ainda se sentia sob o forte impacto do encontro
com Helena. O namorado ligou e quis vê-la, ouviu um não e, para compensar, uma
promessa foi feita: na semana seguinte, mais assim para o final, ele poderia
vir e instalar-se em seu apartamento. “O único homem que me interessa no
momento é meu supervisor, preciso conversar, preciso compreender certas coisas,
preciso perguntar e refletir, refletir, refletir...”
Se teve uma coisa que Helena não
permitiu a Mariana foi a reflexão, e a vocalista ainda se sentia estranhamente privada dessa capacidade ali -
silenciosamente deitada em sua cama - horas depois de ter deixado a Clínica.
Ela não sabia explicar, mas era como se houvesse uma condição para acompanhar
aquela moça: a instalação de um estado virgem de apreensão e comunicação da
alma, em que as explorações caberiam apenas à paciente. “Será que estou ficando
louca?” Balbuciou enquanto levou a mão à pinta, em cima dos lábios; em seguida,
lembrou-se da louca-Helena carregando aquele asfixiante cheiro de
doença-de-morte confirmado pela ineficácia de atitudes ocas. Sentiu novamente,
o calafrio.
Mariana
tentava esquecer e, no entanto, sentia-se engolfada; nem por alguns minutos
conseguia se livrar da presença das Helenas e resolveu denominá-las de
personagens-personalidade, já que precisava expor o que acontecera e sabia que
deveria tomar cuidado com as palavras para não... para não... A plantonista
percebeu que as palavras não serviam como referência para o atendimento da
mulher de Daniel e deveria encontrar outro modo, outro jeito, outro...
O
despertador tocou e a moça, de sobressalto, tentava deixar para trás o
dia-de-ontem; ela conseguira enfim, cochilar nos intervalos... conseguira, pelo
menos... Mariana levantou-se, tomou um banho demorado, deixando a cabeça
debaixo da água quente, fazendo muita espuma, como criança; no entanto, sua
alma ainda não conseguia relaxar porque precisava refletir, refletir,
refletir...
Então, saiu
apressada e só pensava em contar para o supervisor, sabia que dependeria dele o
sucesso do seu reencontro com a esposa de Daniel.
-
A conversa
“Eu vou contar o que
aconteceu, mas eu perdi a agilidade com as palavras, pelo menos no que
considero essencial; eu perdi, professor, nesse caso, as referências e preciso
saber como proceder”. Ele balançou a cabeça com tranqüilidade: “fale” e todos
os olhares voltaram-se para a angustiada aprendiz.
Mariana suspirou e começou o
relato: falou pausadamente, depois falou com objetividade, num ritmo acelerado;
depois emudeceu; depois falou de si, do que sentia, dos sustos que teve de
enfrentar, das surpresas diante de cada aparição de Helena; mais à frente falou
de suas tentativas infundadas de reflexão e continuou falando, eternamente.
Falou por aproximadamente
quarenta minutos, sem qualquer interrupção e, na medida em que avançava na
exposição dos acontecimentos, percebia a estupefação no rosto de cada colega. O
burburinho sobre aquele atendimento já correra mundo pela Clínica afora, mas os
detalhes, as aparições, suas características, isso era novidade-surpreendente,
muito. E o bom é que ninguém quis perguntar, queriam ouvir, queriam que
falasse, queriam a continuidade, queriam a compreensão.
Mariana chegou ao final do
relato um tanto aliviada, sentia que conseguira cumprir a primeira parte de sua
empreitada. O supervisor acompanhou atentamente sua exposição e depois de algum
silêncio, disse: “o que é mais difícil para você em relação ao atendimento da
Helena?” A aprendiz respondeu: “o que ela me pede, não sei se consigo.” “E qual
é o pedido?” “Que eu me empreste a ela para que possa, através de mim, ser tudo
o que necessita”. “É isso mesmo, você captou bem a essência da coisa; e qual a
dificuldade?”
A aprendiz estacou, sabia e
não sabia. “Ela exige demais de mim: várias versões, emoções intensas, espera
conformada, essências tão distintas de mulher que sinto receio de não
corresponder.” “Mas houve correspondência, e o que eu considero importante
saber é se você pretende continuar.” Mariana desejava ardentemente continuar,
assim como desejava perder-se-corajosamente na ineficácia terapêutica,
desistindo. E foi isso que pensou e foi exatamente isso que o supervisor disse
sobre seus desejos.
“Atender Helena é poder instrumentalizar a condição feminina
para fins terapêuticos, ou seja, você precisará emprestar-se para que ela possa
vivenciar-se dividida em seis mulheres. O que teme na condição feminina?” Ele
perguntou enquanto a observava atentamente; “a oscilação”, ela respondeu. O
silêncio veio, o supervisor permaneceu calado. “Cada Helena tem uma essência,
elas me cansam, mas não me assustam; o que receio é o deslumbramento de cada
versão, elas reivindicam primazia e são tão atraentes...” O silêncio
continuava.
Ninguém ousou fazer qualquer
comentário, esperavam. “Continue”, ele estimulou; “as essências são verdadeiras
em cada versão”, ela completou; “as essências são verdadeiras em cada modo de
ser mulher”, ele arrematou; “sim”, ela concluiu. “E você não tem problema com
isso, pelo que percebi no seu relato; se tivesse, não teria acompanhado as
Helenas”. “O meu receio é o risco de toda mulher: é dimensionar uma versão e
reivindicar a primazia de uma única essência”. Os olhos do supervisor
brilharam, ela chegara ao ponto crucial de sua situação. “Você vê alguma
solução possível?” Ele quis saber. Mariana olhou fixamente em seus olhos e
disse: “não, nenhuma”. O supervisor olhou em volta: “alguém vê?” Ninguém
respondeu.
- O masculino
“Use
o masculino que existe em você”, ele sugeriu depois de algum tempo. Mariana não
compreendeu de imediato: “como?” O professor continuou, “existem muitas
atitudes motivadas pelo elemento masculino, vamos dizer assim, no seu encontro
com Helena: vocês duas, no chão, uma querendo explodir e a outra no
movimento-de-contenção, isso se parece com o quê?” A aluna riu e foi a primeira
vez que conseguiu achar graça de alguma coisa que acontecera entre elas; “foi
uma luta, professor, uma queria vencer a outra, havia uma força descomunal
entre nós...” “Isso é próprio do masculino, você não acha?”
“Ainda
não entendi aonde quer chegar...” “A sua maturidade no trato com o feminino é a
chave para estar com as Helenas e o bom uso de sua parte masculina pode ser a
chave para a eficácia terapêutica”. Mariana, ao ouvir essas palavras, sentia
que algo – à revelia - tomava forma em sua alma: era um
componente-fluido-e-sólido que escorria, que poderia tornar-se aço, que poderia
amolecer novamente, que ocupava os espaços.
“Mantenha-se
fiel ao feminino em pauta quando estiver alojada em cada essência feminina, e
faça o contraponto com o modo masculino, quando julgar necessário. Não haverá
contradição, somente oposição-ou-complementaridade, o que é natural na
constituição do gesto humano, sempre mesclado dos dois elementos. É o que deve
fazer para ajudar Helena a reverter seu processo de enlouquecimento. Acredito
que ainda seja possível”.
A
resposta para o seu enigma estava ali, havia sido dada, Mariana a encontrara. O
que não tinha certeza era de que conseguiria e de que Helena também
conseguiria. “Sem garantias, meus alunos, não temos essas garantias; o que
podemos é descobrir a melhor maneira de interagir e nos esforçarmos para
conseguir, só isso.” A vocalista viu um abismo abrir-se diante de seus pés,
como é que alguém se aventurava daquela forma? Como é que alguém se metia com
aquilo?
E,
pela primeira vez, viu seu envolvimento com a psicologia como algo estrutural,
decisivo, feito de essências de almas que ela conseguia orquestrar numa única
variante. “Eu quero tentar, professor.” “Tem certeza disso, Mariana?” Ela fez
que sim com a cabeça, “você pode desistir agora, nesse exato instante, sem o
menor constrangimento”. A moça-que-canta pensou em Helena, no seu desamparo, em
todo aquele desespero e sentiu que deveria estar ao seu lado, mesmo sem
garantias.
“Eu
quero”; “está bem, então seguimos adiante”.
-
Os enigmas
“Há
tanto enigma nesse atendimento, que o melhor é não se deter tempo demasiado em
nenhum deles; não os leve tão a sério, concentre-se no que precisa desenvolver,
aprimore seus recursos e reavalie a situação a cada atendimento. Me ligue para
contar como foi a sessão no mesmo dia em que ela acontecer, e fale tudo, mesmo
o que considerar bobo ou absurdo; tudo mesmo, compreendeu?
As
sessões deverão ser parecidas com a primeira, terão o mesmo padrão; todas as
Helenas virão, elas precisam existir através de você e com-você. Helena a
transformará nela mesma e deve deixar, Helena precisará que não-seja-ela-mesma
e deve não-ser, é assim. Não faça mais nada no dia em que atendê-la, tenha
amigos por perto e se possível peça que fiquem
com você; cuide-se.
Em
relação à Helena-amalucada, tome cuidado para que não se machuque gravemente ao
debater-se; segure-a, proteja-a, não vacile, aja. No próximo encontro, converse
com o marido e certifique-se de que saberá como proceder diante da
possibilidade disso acontecer em casa, tranqüilize-o dizendo exatamente o que
fazer. Também, interrogue sobre as crianças, elas não podem ficar à mercê das
oscilações da mãe, resolva com Daniel a melhor maneira de preservá-las.
Há
ainda outro aspecto importante: preste atenção na medicação prescrita, entre em
contato com o psiquiatra que a atendeu e converse com ele, discuta o
prognóstico. Nas sessões, verifique se Helena toma os remédios, se os considera
necessários; e não se esqueça de investigar com Daniel se a paciente – de fato
- segue a prescrição médica. E, finalmente, marque uma consulta com o nosso
psiquiatra e leve Helena até ele, vamos conhecer sua opinião sobre o caso”.
-
A reflexão
“Como
é que eu vou aprimorar o masculino em mim?” Mariana pensava enquanto comia um
delicioso pão de queijo. Apesar de considerar “verdadeiras” muitas das
teorizações da psicologia, nunca deixara de avaliá-las de outras posições, de
perspectivas diversas. Em outros tempos, se ouvisse a proposta do supervisor, a
rebateria com unhas e argumentos, com graça e perfume, a ferro e sangue.
Esse
posicionamento dava-lhe uma autonomia descrente porque bastava pender para o
lado oposto de qualquer apresentação-argumentativa que a crítica se instalava
causando um distanciamento agudo, pouco condescendente. Mariana, porque
concebida nas águas claras da diversidade, não era mulher para ser convencida,
era mulher para ser convidada, naturalmente auto-concebida na igualdade de
condições. A plantonista decidiu então que, por Helena, “obedeceria” o
supervisor, mesmo que a dúvida atravessasse sua alma e o desconhecido exigisse
submissão, completa.
-
A reflexão do supervisor
Enquanto
apreciava seu café, o supervisor avaliava a situação: era um caso fora do comum
aquele e isso vinha se tornando uma constante no atendimento de Plantão. A cada
ano, a complexidade dos casos aumenta, por que será? Em termos de transmissão
de conhecimento era importante considerar essa questão porque casos com cota
extra de dificuldade requisitavam alunos excepcionalmente talentosos, treinados
e com estrutura emocional bem constituída.
Ao
pensar em Mariana, sabia que a moça-que-canta possuía dois desses requisitos,
mas em termos de treinamento, estava no início e isso o preocupava. Outro fato
curioso é que Helena conseguiu ser atendida justo por ela. Como se explica? As
duas são mulheres, mulatas, com idade próxima, e têm uma pinta no lábio - do
mesmo lado. Além disso, Mariana “foi feita” para atender Helena em decorrência
da configuração de sua personalidade, por causa de sua rara capacidade de
resolver-descomplicando as questões próprias da condição feminina.
A
Helena-composta-de-seis encontrou pela frente, a única estagiária capaz de
atendê-la e – de fato – ajudá-la; era sua única chance. Esse “casamento”
perfeito em termos de necessidade mais auxílio específico é comum nos estágios
em Clínica e os alunos até fazem graça dizendo que “cada terapeuta tem o paciente
que merece”. “É isso mesmo, e por que será?” Ele repetia mentalmente, enquanto
levava a xícara à boca.
E
outra questão intrigante é o fato deles optarem pela continuidade, o que os
move? O supervisor sempre se surpreendia com a decisão dos seus alunos. “O que
move essa bela-cantora, por exemplo? Ela não tem garantia alguma, reconhece a
complexidade da situação e mantém-se firme, disposta a sacrifícios. E o que faz
com que eu deixe que ela se arrisque a tanto? Em que baseio minha confiança? É
claro que a moça continua porque assimila o formato que lhe apresento, caso
contrário, desistiria. E por que sempre apresento o formato?” O supervisor
olhou pela janela e sentiu orgulho de si mesmo e do que podiam realizar diante
de situações tão complexas e dolorosas.
“Aquilo
de enfrentar-respeitando era sem dúvida uma postura diante da existência”,
pensou, “encarnava uma atitude afirmativa; constituía-se numa forma de
sabedoria colocada a serviço de um direcionamento vivo, construtivo. E somente
a paixão pela psicologia era capaz de possibilitar esse tipo de
postura-atitude. Na verdade, era mais que paixão aquilo, era um
amor-paixão-crença; algo forte, determinante, invisivelmente-concreto”.
Eles
voltaram para a supervisão e, ao olhar para Mariana, o supervisor percebeu que
a moça encontrara o caminho e estava em marcha; ela agora, dispunha de
material-para-reflexão, o que possibilitaria a distração necessária em casos
tão complexos. Naquela distração, seria ela mesma, desconectada de Helena;
seria apenas uma mulher disposta à vivência plena de sua condição: o feminino
humano.
Falaram
de outros casos.
-
Os efeitos
Ela
chegou em casa e ligou para os amigos-componentes-da-banda, contou por alto o
que se passara e desmarcou os compromissos para as próximas quatro semanas; não
havia nada de tão urgente assim, e os rapazes não fizeram perguntas
desnecessárias, já a conheciam o suficiente para identificar o sinal vermelho.
Mariana
repassou a supervisão, frase por frase, gesto por gesto, sentimento por
sentimento; depois, fez o jantar, tomou várias doses de pisco chileno e
permaneceu refletindo. O reencontro com a mulher-desdobrada-em-seis seria no
dia seguinte, logo cedo, e constatava, feliz, que havia conseguido sair do
turbilhão em que fora lançada com o enigmático encontro. Agora, existia uma
tranqüilidade de alma que a embalava: completamente voltada para a condição de
Helena e disposta a compor uma unidade, a vocalista nada temia, nada
reivindicava, de nada necessitava. Dormiu profundamente.
-
O retorno
Eles
chegaram dez minutos antes do horário combinado e o que se viu foi uma
repetição da cena do Plantão: Helena “pendurada” no marido, que a conduzia com
altivez e cuidado. Mariana pediu que se dirigissem à sala de atendimento e foi
na frente. Seguiram-na, a mesma posição dois-em-um dentro da sala. Daniel fez
um pequeno relato de como as coisas estavam em casa, esclareceu que não sentira
alteração no estado da mulher e seu objetivo foi acalmar as crianças. A
estagiária o tranqüilizou dizendo que conversariam no final daquela sessão, em
seguida, pediu que ele as deixasse sozinhas.
Assim
que a porta se fechou, Helena ergueu a cabeça e perguntou: “o que você acha
dele?” E soltou o lenço, caminhando pela sala, era a ninfomaníaca em ação.
Mariana agora, pela voz, sabia qual delas estava em cena, poderia permanecer de
olhos fechados que as identificaria. Rapidamente se ajustou à devoradora de
homens e respondeu: “maternal, viril, reprodutor; muito certinho, na maioria
das vezes. Sem dúvida, um bom marido”.
A
resposta pegou a paciente um tanto desprevenida; a mulata, perplexa, deixou o
lenço cair, parou de falar, sentou-se diante da aluna e disse: “essa frase é
minha, eu a teria dito exatamente assim, com conhecimento de causa, com o mesmo
tom de desprezo e conformismo”. Mariana permaneceu em silêncio e olhando-a com
ternura e naturalidade, depois perguntou: “e o que faz quando precisa de mais?”
“Faço ele fazer toda hora, extraio toda sua força; quero aquele pinto fazendo
parte de mim, transformo Daniel em pinto, em caralho, em cacete, em porra”.
A
ninfomaníaca olhou pela janela, “e lembro do que já fiz, antes de conhecê-lo, e
ressuscito todos eles, e aparecem outros, os desconhecidos-atuais; e me vingo
dele com o meu passado, e com os novatos, e quero violência e imagino violência,
e bato e arranco partes do rosto dele com pequenos e finos estiletes, e depois
cravo minhas unhas em rostos-caralho e rio, numa movimentação eterna,
incansável, permanente”.
A
aprendiz continuou olhando para a paciente com naturalidade, a mulher de Daniel,
agora, respirava com dificuldade trincando os dentes. O silêncio esticou-se,
então, de repente, aconteceu uma coisa muito estranha: a plantonista “viu” a
Helena-ninfomaníaca, depois “viu” o marido-objeto-alvo-de-seus-ataques, depois
“viu” Helena, depois o marido-objeto, depois permaneceu no intervalo da
“relação” dos dois. Ela estava entre, lá e cá, integrada na totalidade
reconhecendo as particularidades.
E, surpresa, falou: “eu imagino que seja
impossível não se assustar com a intensidade da agressividade que você dirige a
ele”. Helena voltou-se para a estagiária, parecia incrédula, parecia ofendida,
“o que quer dizer?” “Me refiro ao choque entre o Amor e a Destruição”.
Nesse
instante, alguma coisa soltara-se na alma da paciente e o significado liberado
pela palavra “choque” resvalava em tudo que é fio de alma, em tudo que é
beirada de alma, em todo tipo de parte de alma. E foi então, que a alma da
paciente encolheu-se e, quando encolheu, absorveu, e quando absorveu, deu para
esticar novamente: foi se alastrando, foi crescendo, tornou-se elástica, como
toda alma.
Mariana
percebia o que se passava, e alegrou-se, e calou-se, e esperou. A tentação da
interpretação rastejou pela sala, mas foi algo repentino, bem passageiro. O
efeito espraiava-fermentando, a explicação seria desnecessária. Ali sentadas,
da Ninfomaníaca veio a Vítima, mas não permaneceu mais do que alguns minutos;
depois, foi a vez da Criança, depois da Normal, depois da Ninfomaníaca
novamente.
Mariana
sentiu que era bom sinal aquela alteração na dinâmica da sessão, parecia que
era a vez da Ninfomaníaca manifestar-se e que as outras – generosamente -
cediam espaço a ela; mais um enigma, pensou a estagiária e tratou de desistir
de decifrá-lo. O que sabia é que a modificação se dera em decorrência do modo
como se relacionou com a Ninfomaníaca: parecia
mágica aquilo, ela a atingira em cheio porque
possibilitava uma existência plena, de alma acoplada, que ecoa, que contém, que
espelha, que traduz.
Aquele
funcionamento também facilitava as coisas para a bela-cantora porque a cansava
menos, já que se concentrava apenas num formato de Helena. O silêncio foi outra
novidade da tão esperada segunda sessão: depois da fala bem dita, ele viera
para ficar; tanto que na terceira aparição da devoradora-de-homens, as duas
nada disseram, apenas olhavam pela janela e refletiam, silenciosamente.
“Eu
preciso saber se você toma os remédios que o médico recomendou”, disse assim
que a Normal reapareceu. “Religiosamente, minha terapeuta; eu quero melhorar”,
havia um tom de carinho naquela voz que a aprendiz tratou de aproveitar. “Vejo
esperança na sua voz, gosto disso”. “Eu resolvi lutar, Mariana, não sei do
resultado, mas que vou lutar, vou”. Assim que terminou a frase, virou a cabeça
lentamente e quando voltou a falar já era outra, a Louca.
A
estagiária colocou-se de sobreaviso, era a versão que mais temia. Dessa vez,
não veio a convulsão. A mulher de Daniel subiu na cadeira, agachou, abriu os
braços e disse que era um anjo, e que estava no topo de uma das árvores mais
altas do Parque Assunção. Ela, de lá, observava as pessoas e lia seus
pensamentos, passou então a narrar um ou outro pensamento; depois, fazia uma
previsão sobre o destino dos mortais que andavam por alamedas tão belas, tão
assim de manhãzinha.
“A
imagem da loucura é sempre incômoda”, pensou enquanto se mantinha em alerta
para agir, diante da menor suspeita de perigo. Nada aconteceu nesse sentido,
pois a Normal retornou em seguida e a estagiária aproveitou para comunicar: “eu
preciso conversar a sós com Daniel; devo orientá-lo e esclarecer algumas
coisas, você se incomoda?” “Não, fique à vontade”. “Você me espera aqui,
então?” “Sim, chefinha, e sorriu, pela primeira vez.”
Na
sala ao lado, Mariana explicou o necessário para o marido certinho. A
praticidade das perguntas serviu de alento porque encurtava a conversa e porque
as explicações vinham acompanhadas de indicações sobre estratégias de ação.
Daniel era um homem inteligente, pois mesmo que
não compreendesse determinada coisa, estabelecia rapidamente um tipo de
apreciação que lhe garantia referências para localizar-se: diante do que
Mariana dizia, por exemplo, não ofereceu a menor resistência.
A
estagiária apreciou essa qualidade e passou a vê-lo com mais condescendência,
surgindo até uma tímida simpatia. A cantora-de-bela-voz insistiu na preservação
das crianças e solicitou que Helena não ficasse sozinha, alguém deveria
vigiá-la discretamente. Daniel demonstrava evidente alívio na medida em que a
conversa avançava: depois de meses, pela primeira vez, sentiu que aquelas
pessoas entendiam do riscado. Ele sorriu, e Mariana o “viu” despido do traje
maternal. Era um exemplar e tanto, espetacular; a moça se recompôs.
Depois
de mais acordos, a plantonista retornou para Helena e despediram-se. O casal
partiu.
- A supervisão
“Aconteceu algo muito estranho,
professor! Eu aprendi uma nova maneira de compreender a paciente: eu ‘vejo’ o
fenômeno. É involuntário e parece um presságio... Não é esquisito”? “É uma compreensão súbita, não é? Como um
‘clarão’, assim...uma espécie de aparição de imagem”. Ele falou contente.
Mariana ficou perplexa, “como este homem pode ser tão preciso?” “É uma forma de
compreensão regida pela intuição, moça, aliás, uma poderosa intuição”,
continuou.
“É
uma forma de compreensão em que o raciocínio vem instantaneamente e apresenta o
fenômeno como um todo, na sua essência. É, portanto, a melhor maneira de
compreender algo porque capta a verdade do fenômeno: é como olhar para algo e
ver do que realmente se constitui”.
Mariana não conseguiu articular uma palavra sequer, faltou o ar,
faltou...
“Você
entendeu o porquê da eficácia da sua intervenção?” Perguntou enquanto olhava
fixamente dentro de seus olhos. “Uma parte sim, mas eu não sei traduzir...” “A
ninfomaníaca investe no marido-bonzinho uma potente agressividade, no entanto,
por amá-lo, ressente pela possibilidade de destruir seu objeto de amor. Uma
parte desse medo transforma-se em culpa e uma parte dessa culpa transforma-se
em auto-agressividade. Ao destruir-se, ela ficaria livre da culpa de
destruí-lo; penso que estamos diante de um dos mecanismos que a conduz à
loucura. Ela se desintegraria para poupá-lo”.
“Meu
Deus!” A estagiária exclamou. “Eu vi exatamente isso, professor. Eu vi todas as
particularidades disso, detalhadamente, com ação e reação, com conseqüências,
revelando determinadas escolhas”. “Não se perca no deslumbramento de ver desse
modo, seria perigoso; simplifique, volte ao comum, à percepção cotidiana.
Volte!” A aluna levou um susto, suspirou e pediu um copo d’água; havia retornado.
“Em relação ao psiquiatra”, disse
depois de alguns minutos, “gostei da conversa. Ele insiste no tratamento
psicológico, diz que os remédios apenas acalmam a ansiedade e controlam a
impulsividade de Helena; as dosagens também são baixas para que possa manter-se
lúcida. É isso.” “Excelente, a percepção dele combina com a nossa;
prosseguimos, então?” “Huh, claro.”
- O terceiro encontro
Mariana manteve o intervalo de poucos
dias entre as sessões; esse não era o procedimento adotado em Plantão, no
entanto, em decorrência da gravidade do caso, resolveu que veria a
mulata-com-pinta-no-lábio, três vezes por semana. Ela também decidiu que
falaria do atendimento somente em supervisão, nada de buxixos e detalhamentos
avulsos.
As suas colegas respeitaram, mas não
gostaram da decisão. Os buxixos extra supervisão eram um acontecimento à parte,
nos estágios de Plantão e muita coisa se ficava sabendo longe dos olhos do
supervisor. Aqueles detalhes “insignificantes”, as seqüências não mencionadas
em decorrência do tempo de supervisão, os sentimentos mais variados do
estagiário, observações sobre roupas e higiene, as atitudes tragicômicas do
paciente, tudo isso formava um delicioso universo de curiosidade e comentários.
Mariana, não comentando, mantinha a
concentração e se protegia, desgatava menos. Ela decidiu entregar-se de corpo e
alma ao atendimento e não queria desviar-se de seus propósitos: a
cantora-plantonista sentia-se exclusiva da mulata-de-cabelos-cacheados e,
definitivamente, co-habitava seu mundo, suas dores, seu processo de
enlouquecimento. Para o bem e para o mal.
Na terceira sessão, o marido trouxe
também uma grande sacola. Assim que Daniel saiu do consultório, ela moveu o
corpo com delicadeza e a menina Helena apareceu: “eu tenho aqui, algumas de
minhas bonecas, você quer que eu mostre?” “Quero, claro”. Ela então, sentou-se
no meio da sala, empurrou as cadeiras mais próximas, pegou a sacola e retirou
uma a uma. “Essa é a Pamela, já falei dela, é aquela que vai casar”, e colocou
a boneca sentada no chão.
Assim fez com as 15 bonecas, todas
lindas, com diferentes histórias de vida. Enquanto falava, ela as penteava, maquiava, ajeitava. Trocou peças de
roupa, encenou encontros, determinou destinos. A estagiária também sentou no
chão e acompanhou-a em seu criativo mundo de imaginação: brincaram; durante uma
hora e meia, plantonista e paciente brincaram de boneca; e foram momentos muito
agradáveis para Mariana, que apenas brincou, despretensiosa.
“O que pensa dela” perguntou, de
súbito, a Normal. “É graciosa, encantadora, e muito carente, parece que perdeu
algo antes do tempo.” “Foi a inocência, não é mesmo? Tem algo atravessado nela,
uma coisa não-assimilada, como uma queda permanente.” A aprendiz olhou para
Helena, o que “via”era exatamente assim. “E como é que se ameniza isso,
doutora?” Perguntou aflita, enquanto olhava pela janela.
“Eu não sei.” Veio o silêncio, que
durou um tempo longo. Helena fechou os olhos e respirava lentamente, então
soltou uma gargalhada estridente e empurrou cadeiras de encontro à parede.
Mariana deu um salto, a Louca começou a girar em torno de si mesma e fez menção
de se aproximar da janela, a estagiária deu dois passos para frente. Foi então,
que numa fração de segundo, a mulher de Daniel tentou bater a cabeça nas grades,
a cantora-plantonista foi mais rápida segurando-a com força; travou-se
novamente, o duelo entre as duas.
A Louca forçava e a futura psicóloga
impedia. O cheiro de doença crônica mortal voltou, Mariana fraquejou, a
paciente quase se desvencilhou, deu um tranco, mas a cantora firmou o pé
direito e devolveu o tranco. Helena caiu e começou a chorar, era a Meninota. O
choro veio contido, como se não pudesse mostrar que chorava; a estagiária
sentou-se, puxou a paciente para si, colocou a cabeça dela em seu colo e
fez-lhe cafuné. A menina-Helena chorou, chorou, chorou... até adormecer.
Mariana continuou a afagar os cabelos
cacheados e longos, e ficaram assim: uma afagando e a outra dormindo. A
plantonista-estagiária já percebera que o tempo, quando estavam juntas,
adquiria outro ritmo. Isso ela nem mencionara em supervisão porque causaria uma
perplexidade-desmedida, então, aceitava simplesmente, acatava o que o
supervisor dissera. O que sentia, por exemplo, era que a condição de afago, na
sala de atendimento, durou dias e dias, no entanto, ao consultar o relógio,
apenas meia hora se passara.
E da Meninota foi mãe; pretendeu,
através do afago, tornar a carência-queda menos dolorosa. Foi uma tentativa de
resgatar a inocência através do poder da relação-de-extensão, em que uma existe
a partir da outra. E como se tratava de duas mulheres, uma delas deveria
possibilitar então, a existência do si-mesmo, de outra-semelhante. Nessa hora,
a aprendiz “viu” em sua alma a facilidade que na maioria aparece como
complicação: a necessidade-exigência de ser a única impedia o
desprendimento necessário para a constituição da outra-semelhante: a extensão
de uma igual dificultava as coisas e a cantora-de-bela-voz compreendeu o
porquê dos famosos atritos entre mãe e filha.
A Meninota acordou e ainda permaneceu um tempo
com a cabeça no colo de Mariana. O silêncio era absoluto, mas acolhedor; a
respiração dela foi se tornando leve, quase imperceptível: porque nem pesava
parecia um anjo dormindo. Era assim que a estagiária sentia a inocência das
crianças, havia uma transparência leve, suavemente-perfumada, descomprometida,
delicada: a pureza.
A paciente levantou a cabeça, a Normal
reapareceu: “parece que mergulhei no poço do amor, como é bom...obrigada.”
Mariana sorriu, quem deveria agradecer era ela, por aprender tanto.
Despediram-se.
-
A seqüência
O
final de semana chegou e a cantora-psicóloga quis a solidão e o silêncio. Só
fazia pensar e relembrar; sentiu-se tão privilegiada, que sentiu humildade.
Mariana não morria de amores pela humildade, não que fosse arrogante, mas na
sua compreensão, a humildade a tornava submissa. No entanto, com a experiência
da mulher-desdobrada-em-seis descobria que a sabedoria conduz à humildade e
estava disposta a reaprender.
No
quarto encontro, que aconteceu no início da semana, quem apareceu quase o tempo
todo na sessão foi a Vítima. Mariana além de ouvir concentrou-se num tema
específico: as escolhas. O que a moça-vítima deixava evidente com seu
palavrório era uma atmosfera de auto-valorização pela condição de não-escolha,
mas qual a função disso?
A
estagiária pretendeu ultrapassar as considerações corriqueiras: mecanismo de
defesa, compensação pela auto-desvalorização, etc e etc. O curioso era que essa
versão, dentre todas, parecia valorizar sobremaneira seu modo de ser; nem a
Ninfomaníaca trazia tamanha volúpia de aparição-exibicionista. O que há de tão
especial na impossibilidade de fazer frente a condições externas? A estagiária
não conseguia avançar... Então desistiu e assim que olhou pela janela, veio o
famoso arrepio: Helena-louca se aproximando.
Um
riso estridente ecoou alto pelo consultório. A Louca sentou diante da aprendiz
e ficou a observá-la; ela mexia com a cabeça e revirava discretamente os olhos
daquele jeito que somente os malucos conseguem fazer. Mariana não gostou da
situação, mas não tinha alternativa: resolveu enfrentar, encarando. Ela sentiu
que a Louca procurava alguma coisa em sua alma, e que se fosse normal
perguntaria; então, falou para si mesma, “os loucos fazem estranhas escolhas”.
E
gostou de pensar a loucura numa perspectiva de escolhas. A aluna queria muito
“ver” a loucura, mas não conseguia; a intuição não vinha. “O que você quer?”
Resolveu arriscar, era a primeira vez que se dirigia àquela versão. Silêncio; a
paciente, no entanto, compreendera porque alterara ligeiramente as feições do
rosto. O modo fixo de manter o olhar, também, característica dos malucos foi a
próxima estratégia utilizada por Helena, o que começou a incomodar a
estagiária, pois, tinha que fazer um esforço sobre-humano para permanecer
vasculhada, aguardando.
Aquilo
parecia uma disputa, pensou, de repente. Ela mede forças comigo, quer me
vencer. “Não vejo problema em que vença, isso aqui não é um ringue”, falou
calmamente. “Não quero apenas a derrota para você, quero que sinta a energia
descomunal das escolhas sem sentido aparente”. Falou pela primeira vez, numa
voz grave e fanhosa, a louca-Helena. “Eu gostaria mesmo era de ver o
sentido...” retrucou Mariana. “Não pode e sabe por quê?” Silêncio. “Precisaria
estar do lado de cá.” Silêncio. “O que eu, porém, lhe adianto é que não é tão
ruim quanto parece”.
E
riu descontroladamente, ameaçadoramente. Mariana recuou a cabeça, não queria
mais. Sentiu uma “coisa” contagiante acariciando seu corpo, seus cabelos e,
também, sua alma; então, prendeu a respiração, concentrou-se num único ponto do
rosto de Helena, em seguida, abaixou a cabeça e gritou: “não!!!!!!!!!!!!!!!!”
A
Louca assustou-se e deu vez à Meninota. Mariana levantou a cabeça respirando
ofegante, a “coisa” pegajosa havia desaparecido.
-
A supervisão
“Você
está certa em supor que a Helena-vítima obtém mais prazer na auto-exposição do
que a Ninfomaníaca; a condição de não-saída, que indica a hegemonia das
escolhas condicionadas, revela a impossibilidade de alteração das condições
inatamente-construídas durante o primeiro estágio da existência. Imagine viver sempre
assim, sabendo que não poderá alterar qualquer coisa em si mesma. Trata-se de
um privilégio às avessas. Não é mesmo?”
“Eu
não gostaria”. O supervisor sorriu. “Em relação à loucura, nossa paciente
anuncia um aspecto contagioso. Parece que ela queria te contaminar, é isso?
“Sim, professor, foi horrível”. “E ainda prometia que não seria tão
desagradável.” “Huh”. “Essa questão é complexa, é melhor não entrarmos nesse
mérito Mariana; no entanto, o interessante é que se pensarmos em termos de
constituição de identidades, qualquer que seja a identidade em questão haverá inevitavelmente
a afirmação desta em detrimento de todas as outras”.
O
silêncio envolveu a todos. “Eu gostei que estivesse impedida de ‘ver’ a
loucura, ‘algo’ te protegeu; melhor assim, não?” “Eu queria muito, mas em
determinado momento, desisti, senti o perigo”. “As coisas estão indo muito bem,
moça! Pense. Até a Maluca quis falar com você, quis conhecê-la. Parabéns, logo,
logo, teremos novidade.” “Como assim, o que quer dizer?” “Que a
mulata-desdobrada-em-seis está movimentando-se no sentido de retomar a
integração de sua personalidade.”
A
afirmação do supervisor encheu de alegria os dias de Mariana. A plantonista não
acompanhou o raciocínio do mestre, mas nele acreditou. A simples idéia de que a
mulher-do-lenço-colorido conseguiria reverter seu processo de enlouquecimento a
fazia perder o sono. E o que dizer do modo como foi dito? Assim, publicamente,
na frente de quem quisesse ouvir? A moça resplandecia e sentiu que seu corpo
não comportaria tamanha satisfação. E tratou então, de preparar a alma, caso
acontecesse.
É
que não saberia o que fazer com a alegria desmedida, repleta, permanente. A
plantonista chegou a imaginar que uma alegria como aquela poderia se estender
por tempo demais e não queria. Nesta vida, queria era sentir de tudo, pelo
menos quase tudo: o estado permanente de uma única emoção a assustava, a
conduziria à estagnação e ao tédio. E considerou que diante da intensidade
duradoura dos afetos, deveria acelerar a passagem do tempo. E mais uma coisa
esquisita aconteceu: desenvolveu a habilidade de desgastar a intensidade da
alegria, submetendo-a à aceleração do tempo.
A
aprendiz jamais concebera tal coisa, mas, agora, sabia como fazer; bastava
então, esperar que a alegria resplandecente viesse redonda, absoluta; não a
temia mais.
- A quinta sessão
A bela moça atravessou o grande portão,
parou por alguns instantes, olhou para cima e deteve-se nos detalhes do sobrado
em que a Clínica estava instalada. Depois, ajeitou os óculos escuros, avançou,
empurrou a porta de vidro e disse: “boa tarde!” A sala de espera estava vazia,
Beatriz levantou a cabeça e respondeu: “boa tarde, em que posso ajudá-la?”
“Eu tenho uma consulta daqui a quinze
minutos com a Dr. Mariana”. E sentou-se. “Deve haver algum engano, a Mariana
tem atendimento nesse horário, mas é com outra paciente”. “Não se preocupe, é
comigo sim, você é que ainda não tinha me visto. Sou Helena de Sousa Ortega.” A
funcionária não conseguiu esconder o assombro. “Como? A esposa do Daniel?”
“Huh, eu mesma; agora consigo vir parecendo gente, não é?” E sorriu, os dentes
eram imaculadamente brancos e o cabelo solto, volumoso, bem tratado, resplandecia.
“Pode aguardar, por favor.” “Obrigada.”
A secretária pediu licença e dirigiu-se até a sala de alunos. “Mariana, eu não
acredito. Ela veio sozinha, está lá, linda. Eu não imaginava que era tão
linda.” “De quem você está falando? O que houve?” “Venha, venha comigo.” E
arrastou a aluna pela mão. Deu a volta, entrou pela sala dos professores, pediu
que a cantora ficasse parada em determinado lugar, abriu uma porta que ficava
no canto oposto e teve acesso à sala de atendimento. Ao entrar, deixou propositalmente
a porta aberta e, do lugar de onde estava, a aluna podia ver Helena sentada,
folheando uma revista.
A funcionária retornou com uns papéis
na mão e fechou a porta. “Viu só?” “Ela sempre me surpreende, Beatriz, sempre.”
“Que coisa, hein!? Em tão pouco tempo! Parabéns!” A aluna não entendeu direito,
não sentia como mérito seu aquela melhora espetacular. Saiu para a parte dos
fundos da Clínica, foi respirar e deixou o sol bater em seu rosto. “Nada é
permanente no atendimento dessa mulher, de turbilhão em turbilhão estamos
aqui, aquecendo sob o sol”, falou baixinho e discretamente sorriu e, pela
primeira vez, cantarolou: “eu sei que ainda estão rolando os dados, porque o
tempo, o tempo não pára, não pára não, não pára...”
Era a primeira vez que conseguia
cantarolar depois de conhecer a mulher de Daniel. Aí sim, a alegria veio como
arrebentação, arrastando e misturando pedaços de alma: de uma e de outra, de
Mariana e de Helena, de médica e de paciente, de
mulheres possíveis, de múltiplas-mulheres-múltiplas, de vida. A plantonista
conferiu as horas, passou uma água no rosto e em seguida dirigiu-se à sala de atendimento.
“Helena”, chamou com voz firme; “oi,
Doutora, tudo bem?” A mulata levantou-se, estendeu a mão e foi conduzida ao
consultório. Beatriz mal conseguia atender ao telefone, já vira muita coisa
naquela clínica, mas uma transformação daquele calibre era de tirar o chapéu.
“Sente-se”, disse a estagiária, “como é
bom vê-la assim, parabéns, mulher.” “Obrigada, mas metade disto é mérito seu;
quarenta por cento meu e dez por cento do Daniel, fiz bem a divisão?” “A Normal
é quem fala e parece que assumiu o comando; e as outras, o que aconteceu com as
outras?” Pensou a cantora. Em sintonia, veio a resposta, “eu não sei exatamente
o que aconteceu, mas sinto que a lucidez vence e as outras estão se
transformando em personagens novamente.” “Helena, isso é fantástico!” “E eu não
sei? Imagine a alegria do Daniel, ele queria vir aqui beijar seus pés.”
“Conte-me o que está sentindo, por
favor.” “Força, segurança, alegria, certeza. Aqui dentro do peito; sabe a
fênix, que pega fogo e renasce? É o que sinto. Nem tenho mais medo das outras,
se quiserem vir que venham; é isso.” Respirou calmamente e continuou, “o que eu
fui e sofri, está guardado de um jeito bom dentro de minha alma, não me
perturbam mais; e o que pretendo fazer é construir uma nova vida, de alegria e
de paz.” E falou e conversaram, e se alegraram.
A nova Helena deteve-se num assunto que
anteriormente apenas compunha o cenário turbulento dos atendimentos: seus
filhos. Falou de cada um, demoradamente. O que ela mais desejava era
relacionar-se com os filhos de modo espontâneo, maduro, equilibrado. A bela
mulata queria ser afetuosa, dedicada, inteira; e que seus conflitos não
atrapalhassem a relação com as crianças. Antes, porém, havia um turbilhão que a
arrastava-consumindo. “Como é possível ser boa mãe se nem mãe tive?” Perguntou
com tristeza. “De onde eu poderia tirar o afeto que não me deram?” Continuou.
“Como sair da ausência para a presença equilibrada?”
E falou, e se expôs, e chorou. Mariana
ouvia com atenção, nada disse, nenhum comentário fez; apenas a consolava com os
olhos, com o carinho que deixava exalar dos olhos. Quando a sessão já ia longe,
a Menina-Helena apareceu. Apresentou-se tão singela que só cantou. A voz suave
era límpida, mais afinada que das outras vezes. A aprendiz permaneceu calada e,
de vez em quando, fechava os olhos deixando que a música ocupasse espaços de
alma.
A quinta sessão foi assim: redenção
vinda de todos os lugares, tristeza que principia a esperança, salvação da
alma. Mariana, quando chegou em casa, chorou. Tanto, que pensou que nunca
pararia. “Se eu tiver que morrer agora, morro satisfeita, realizada, plena.”
Dizia baixinho enquanto as lágrimas escorriam calmas, cristalinas. Passou a
noite a olhar, através das lágrimas, a vida autônoma e misteriosa. Compreendia
tanto e nada levava, apenas a potente satisfação de auxiliar.
Naquele instante, sentiu que tinha
descoberto sua vocação. Viera ao mundo para fazer o que fizera, e nada podia
ser tão enriquecedor, tão espetacular. Sentiu-se privilegiada por colher bons
frutos do enfrentamento com forças tão poderosas e sentiu que arriscara tudo,
até a sanidade. E colheu a redenção: a possibilidade de fazer o melhor no pior,
de elevar as condições da existência, de romper com elos que aprisionam e
conduzem ao sofrimento resultante das inadequações.
- A supervisão
Mariana relatou com fidelidade e leveza
tudo o que ocorrera na quinta sessão e nas horas que se seguiram. Várias
colegas choraram, e o silêncio era a única forma possível de reação àquele
relato. O supervisor também permaneceu em silêncio. Se a aprendiz sentiu-se
justificada e vocacionada, ele vivenciou a mesma condição elevada à décima
potência. O responsável pela atuação dos estagiários de Plantão viu sua vocação
de formador atingir o ponto máximo, o topo da potência transformadora: ele
tanto possibilitava a redenção de um quanto ensinava o ofício a outro. Duas
atividades difíceis e complexas, quase impossíveis. No final, ele falou pouco,
apenas ressaltou o que Mariana destacara tão bem. Em termos da continuidade do
atendimento, disse que mais duas ou três sessões seriam suficientes e que
depois, a plantonista poderia acompanhá-la de quinze em quinze dias.
-
O término
Foi
exatamente dessa forma. A sexta e a sétima sessões aconteceram apenas com a
Helena-normal, que parecia renascida; não é que voltara a ser o que era,
transformara-se noutra coisa, bem melhor que antes. Daniel veio e abraçou
Mariana com tanta força que a moça quase chorou; ele parecia uma criança,
estava radiante, e não usava o característico terno.
As
duas trataram de comunicar ao psiquiatra o resultado do tratamento e Helena, na
sétima sessão, trouxe os filhos para a vocalista conhecer. A mulata trouxe
ainda dois presentes: uma bolsa e um lenço colorido, parecido com o que usava.
A estagiária não acreditou quando tocou naquela peça, desejara tanto ter um
lenço daquele. . . Sorriu.
A
despedida deu-se de forma alegre. Uma jurou para a outra que jamais a
esqueceria. Helena não queria vir de quinze em quinze dias, marcou para daí um
mês. Mariana concordou. Abraçaram-se. A mulata disse: “obrigada, Doutora, você
me salvou.” A vocalista respondeu: “obrigada Helena, você mostrou minha
vocação; isso quer dizer que também me salvou.”
As
duas se olharam com ternura. A mulata deu a mão aos filhos, atravessou a porta
de vidro, contemplou o céu azul turquesa, atravessou o grande portão, respirou
profundamente e partiu.